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sábado, 12 de maio de 2012

O GAP da engenharia cobra a conta




Greg Epperson/Shutterstock
No cenário atual, engenheiros de obra são profissionais raros. Às construtoras, restaram duas alternativas: contratar engenheiros recém-formados, sem experiência e às vezes malformados, ou então buscar profissionais veteranos, próximos da aposentadoria. Esse é o resultado de um gap de gerações, entre 1980 e 1995, que por causa da hiperinflação e sucessivos fracassos econômicos, acarretou na desvalorização da engenharia civil e no desinteresse pela carreira. Crescendo a taxas altas e com a escalada da produção de unidades imobiliárias para as classes C e D, engenheiros são disputados pelo bolso e pelos benefícios. A estagnação de antes dá lugar agora a um fenômeno autofágico, em que uma empresa assedia o profissional de outra abertamente, que inclui até os veteranos.

O fenômeno é confirmado pelo consultor Nilton Vargas, diretor da Neolabor, que durante anos vem trabalhando em programas de gestão para atualização de quadros de grandes empresas. Segundo Vargas, engenheiros que haviam saído do mercado para montar pequenas construtoras e empreiteiras estão voltando como empregados. Uma das grandes qualidades dessa geração, segundo ele, é ter uma vivência técnica sem similar entre os mais jovens, mas faz uma ressalva: quem contratá-los deve estar preparado para um possível "choque de culturas". "Os mais velhos têm muito a ensinar, enquanto os mais jovens são mais familiarizados com as Tecnologias de Informação, imprescindíveis hoje", explica Vargas. "É preciso 'casar' as competências dessas duas gerações, e os mais velhos podem servir de mentores dos mais novos", sugere Vargas.

Mas conseguir isso não é fácil, adianta o consultor. O problema, segundo Vargas, é que os mais velhos têm muito conhecimento técnico mas pouca habilidade de relacionamento. "Como chefes, têm o perfil de tocadores de obra, mas pouca visão empresarial", explica. "Os jovens terminam a faculdade e logo fazem um MBA, o que lhes dá mais visão de negócio. Aí as diferenças logo aparecem e podem se tornar problemas em vez de um encontro saudável." Às empresas que não dispõem de programas nem tempo para fazer essa aproximação de gerações e intercâmbio de competências de conhecimento, Vargas aconselha que, em vez dos cargos de chefia, os engenheiros mais velhos possam ser contratados como consultores ou formadores.
Experiência é fundamental
Para Roberto de Souza, diretor do CTE (Centro de Tecnologia de Edificações), empresa de gerenciamento e consultoria para a construção, as mudanças do setor estão exigindo posturas que dificilmente alguém fora do mercado conseguirá retomar sem atua­lização ampla, sobretudo em TI e nos aspectos de planejamento. "Estamos trabalhando com os mesmos paradigmas mas num cenário novo", explica Souza. "O setor está crescendo rapidamente, os incorporadores abriram capital, e as empresas passaram de seis para 60 obras. As grandes construtoras estão com 200 a 220 obras, atuando em escala nacional. Mas o modelo de gestão não acompanhou isso", alerta. "Imagina um profissional voltando ao mercado nesse cenário."

A outra questão, lembra Souza, é que os profissionais que ficaram no setor, os mais experientes, foram alçados a posições de gerência de planejamento, de projetos, de suprimentos, gerência regional e até para diretorias. Isso acabou criando um vácuo na ponta da produção. Lançados às obras em meio ao caos dos prazos, os mais novos podem ter problemas. Essa é, para Souza, a razão de tantas obras estarem fora de controle. "O engenheiro de obra é o último elo da cadeia, tem que fazer a fábrica funcionar e, ao mesmo tempo, reportar todas as ações da produção no sistema de gestão da empresa", esclarece Souza. "O engenheiro, geralmente muito novo, saiu de uma obra de 10 mil m2 para uma de 100 mil m2, sem qualquer treinamento", espanta-se.

Para Souza, o engenheiro de obra está rendido, e a construtora também fica refém até de profissionais que não são competentes, pois não pode abrir mão de nenhum. Resta gerenciar e administrar. Criou-se, acredita Souza, uma situação que ainda não se estabilizou. Mas o pior, de acordo com ele, é que os atrasos nas obras estão sendo admitidos como naturais e entram facilmente nos seis meses de carência de entrega. Há também sinais, segundo o consultor, de que os custos das obras estão paulatinamente se descolando do INCC (Índice Nacional de Custo da Construção), base dos reajustes de contratos. "Se isso se caracterizar como tendência, poderá haver um comprometimento das margens de rentabilidade dos empreendimentos em construção", alerta Souza. Além disso, a qualidade estaria deixando a desejar. "Os sistemas de gestão da qualidade, as inspeções de serviços e os controles tecnológicos não estão rodando 100% nos canteiros, podendo gerar problemas para os consumidores", explica.

O perfil do engenheiro, portanto, terá que mudar muito. Antes havia o tocador de obras, que pegava o chicote e fazia todos trabalharem. Na transição, esclarece, o engenheiro de obra torna-se um "burocrata-administrativo", que fica o dia inteiro no computador para entregar o relatório do SAP, preencher a planilha financeira, receber o auditor de segurança, preencher as planilhas da qualidade, de orçamento, cuidar do empreiteiro e fazer a licitação e a equalização de propostas para o suprimento. "Eu acho que temos de evoluir para uma solução setorial, criar uma universidade corporativa da construção, definir um perfil para o engenheiro que necessitamos e capacitá-lo, desde projeto e planejamento de obra, gestão de contratos de fornecimento, gestão da qualidade, da segurança e meio ambiente", sugere Souza.

De Brasília até a Bolsa de Valores
Década de 1960 - Sem mecanização, os canteiros empregavam grande número de pessoas. Na construção de Brasília, inaugurada em 1960 e que durou quatro anos, trabalharam 65 mil operários. Quem toca a obra é o mestre. Começam a se consolidar as grandes empreiteiras nacionais.

Arquivo publico do DF
Década de 1970 - Fase do regime militar e do "milagre econômico", que gerou a construção de grandes barragens, hidrelétricas e estradas. Implantação de novos processos tecnológicos em obras de construção pesada e na habitação de larga escala, promovida pelo BNH. Qualificação dos engenheiros e início da criação de grandes empresas de projetos.

iladm/Shutterstock
Década de 1980 - Extinção do BNH e agravamento da inflação. Fim das grandes obras de infraestrutura e recessão no setor imobiliário. Desvalorização da engenharia e início da "ciranda financeira" das aplicações. Engenheiros migram para outros setores. Sem nenhuma preocupação com prazos e custos, as obras imobiliárias deixam a inovação de lado.

Década de 1990 - Encol e Método aplicam a engenharia de produção à construção civil. O baixo crescimento da economia motiva a busca pelo aumento da produtividade e redução de custos. O drywall, a alvenaria racionalizada, o banheiro pronto e outras tecnologias aparecem. Uso do Project para controle das obras. Surgem a nova NR-18, que renova a ênfase na segurança, e os programas de qualidade, como Qualihab e PBQP-H.

Divulgação: Racional Engenharia
2000/2005 - A URV (Unidade Real de Valor) e o Plano Real domam a inflação. Nasce a visão sistêmica da obra. Busca pelas certificações ISO 9000 e ISO 14000. Uso de sistemas pré-fabricados e mecanização das obras. Fabricantes de novas tecnologias oferecem treinamentos. Aumento das preocupações ambientais.

A partir de 2005 - As construtoras se lançam na Bolsa de Valores. A alienação fiduciária, a securitização de recebíveis e o patrimônio de afetação criam arcabouço jurídico seguro para financiamentos. Criação do Programa de Aceleração do Crescimento e do programa Minha Casa, Minha Vida. Interesse pelo segmento de habitação popular. Engenheiros são incentivados a buscar conhecimento em negócios, que ganha tanta importância quanto o conhecimento técnico.

Marcelo Scandroli


Fotos: Marcelo Scandroli
João Paulo Reis Faleiros Soares gerente de RH da Método Engenharia
Oportunidade de mercado
Como o senhor vê os engenheiros mais velhos? Como a Método lida com os profissionais mais experientes que chegam à empresa?
Temos contratado profissionais de mais de 40 anos para posições de maior responsabilidade. Quem conseguiu construir um currículo mais consistente e atuou em obras complexas, leva vantagem. Quem tem experiência, sabe resolver problemas. E obra, a gente sabe, é o lugar onde os problemas acontecem.
O engenheiro mais velho deve ser mentor do mais novo?
A troca de experiências no contexto real de trabalho é fundamental. Colocar engenheiros mais novos - que geralmente vêm cheios de energia mas têm pouca experiência prática - para trabalhar sob a supervisão de engenheiros mais experientes pode ajudar a gerar soluções para novos problemas. O engenheiro mais velho pode ter, sim, esse papel de "formador".

Podemos dizer que o engenheiro de obras tem um novo perfil, diferente do que tinha há duas décadas? Atualmente valoriza-se a habilidade nas relações interpessoais, pois há uma grande interdependência entre construtoras e fornecedores. O mesmo acontece no relacionamento com clientes e funcionários. Em obras comerciais, por exemplo, um bom relacionamento com o cliente pode gerar novos contratos.
Desafios do Engenheiro mais velho

Fotos: Marcelo Scandroli
Hoje, o profissional precisa demonstrar um perfil versátil para desenvolver várias frentes de trabalho, simultaneamente. Outro grande desafio é conviver com os novos paradigmas do mundo globalizado e digitalizado, onde todos compartilham o mesmo espaço. Segundo Vera Martins, educadora e mestre em comunicação, diretora da Assertiva Consultores, as gerações mais novas pensam diferente da geração do mundo analógico. No mundo digital, as relações interpessoais são mais igualitárias e assertivas. "Esse novo mundo corporativo, diferente do tradicional, exigirá do engenheiro mais velho flexibilidade para mudar, revisar seu modelo mental, avaliando quais crenças e valores estão orientando seu comportamento de forma produtiva e os que devem ser adequados aos novos tempos", recomenda.

Segundo Vera, por ter mais experiência, esse profissional fará bem o papel de mentor se usar uma comunicação assertiva, clara e respeitosa, estabelecendo uma sintonia com os mais jovens. Porém, se ele se colocar numa posição de "sabe tudo", o jovem poderá reagir desfavoravelmente. "As novas gerações acreditam que também podem ensinar os mais velhos. E como os jovens se relacionam por meio de redes sociais, onde todos têm a mesma importância e são iguais, o paradigma das relações interpessoais também muda dentro das empresas", explica Vera. Outro problema a ser enfrentado é lidar com as relações de poder. Antes, a crença reinante era "manda quem pode e obedece quem tem juízo". Hoje, o foco está nas competências e nos resultados. Portanto, o engenheiro veterano deve ser proativo, correr riscos, tomar decisões e resolver os problemas. "Além disso, o timing é outro. Não dá mais para esperar o chefe dar a última palavra", lembra Vera. "O mundo está mais acelerado e as decisões não podem ficar centradas no topo da pirâmide."
Os Veteranos

Fotos: Marcelo Scandroli
Francisco Saes, 50 anos coordenador de obras da Araújo Engenheiros Associados
Engenheiro civil formado pelo Mackenzie em 1986, Francisco afirma que o mercado está "comprador" e, por isso, há oportunidades para os profissionais veteranos. Há uma forte procura por gerentes, coordenadores e engenheiros de obra. "Eu tenho sido consultado por empresas de headhunting e até diretamente por empreendedores", conta ele, diante da situação atípica. Com jornada de trabalho que geralmente avança noite adentro, Francisco lembra que em algumas empresas o engenheiro de obra responde pela quase totalidade dos processos do empreendimento, desde planejamento, programação e controle - da produção, dos processos, contratos - até projetos e relacionamento com clientes. Como atende a clientes institucionais, shopping centers e hospitais, muitas vezes, o trabalho se estende até o período noturno. O estresse, inevitável, ocorre em função dos prazos, custos, das várias frentes de serviços, da mão de obra difícil e sem qualificação e da administração do tempo. "Procuro prever esses eventos no planejamento semanal para gerenciá-los, de forma a não comprometer o meu trabalho, nem minha saúde", pondera.

Desde o início da carreira, Francisco trabalhou em várias áreas, desde construtoras, gerenciadoras, empresas de engenharia consultiva, consultoria de gestão, atuando também como contratante de obras em instituição de ensino. A dificuldade maior foi nos anos 80, quando a economia do país entrou em recessão. "Tive companheiros que migraram para outras áreas, principalmente a financeira, de seguros e, nos anos 1990, para TI, para implantação de software de gestão ERP. Alguns, ainda hoje, encontram-se em posições de destaque nessas áreas", diz. O que o fez permanecer na área foram os desafios da profissão de engenheiro, que mescla a busca de soluções técnicas, boa convivência e entendimento, crescimento profissional e pessoal dele e dos colegas.

Hoje, com sua experiência, ele tem prazer em ensinar os mais novos. "Quando identifico potencial em algum trabalhador ou colega mais novo, não deixo de promover um coaching, orientando a pessoa", descreve. Para ele, o engenheiro deve ser proativo e saber comunicar-se bem. No dia-a-dia procura estabelecer uma cultura de entendimento, ouvindo todos os envolvidos. Isso promove o envolvimento das pessoas, segundo Francisco, trazendo ganhos para todos. O diálogo, diz ele, deve ser a grande ferramenta dentro de uma obra, e estabelecê-lo é uma obrigação do profissional que lidera. A partir daí ele direciona suas decisões da forma mais objetiva possível. Com isso, espera o real comprometimento das pessoas com o trabalho, meta principal do engenheiro que atua em obras.

Fotos: Marcelo Scandroli
José Luiz Ribeiro Barbosa, 61 anos coordenador de obras da Leiter Engenharia
A rotina de José Luiz, como não pode deixar de ser em tempos de mercado aquecido, é multitarefas. Planejar, controlar os custos, zelar pela qualidade dos serviços, cuidar da segurança no trabalho e dar condições para que os funcionários possam desenvolver suas tarefas fazem parte do cotidiano do engenheiro civil formado pela Escola de Engenharia Civil de Volta Redonda, Rio de Janeiro, em 1978. Nas obras de conjuntos residenciais para o Minha Casa, Minha Vida, ele enfrenta a jornada de trabalho de oito horas, mas que normalmente se prolonga, às vezes por conta de reuniões no escritório ou na obra com fornecedores, calculistas, arquitetos. Segundo ele, a principal fonte de estresse para o engenheiro que lida com obras hoje em dia é a baixa qualidade da mão de obra. Portanto, a tarefa exige um acompanhamento mais rigoroso da execução dos serviços, desviando o profissional de sua atividade principal que é o planejamento da obra. Com o mercado aquecido, trabalho não falta e a procura por profissionais com experiência é grande. "Tenho recebido algumas propostas, mas não a ponto de deixar meu atual emprego, pois não devemos ver somente a remuneração, mas também as condições e os benefícios indiretos oferecidos pela empresa", pontua.

Sua trajetória na construção civil foi bem diversificada, passando por obras industriais, comerciais e residenciais, inclusive em outros Estados. "Ocupei funções desde engenheiro estagiário a gerente de engenharia. No início, como recém-formado, senti dificuldade por causa da falta de experiência, já que a faculdade onde cursei engenharia não oferecia muitas oportunidades de estágio", lembra. Também viveu nas fases mais difíceis por que passou o setor da construção civil o fantasma do desemprego. Em épocas de crise, enfrentou muitas dificuldades e precisou submeter-se a salários mais baixos do que o mínimo condizente com a sua experiência. "O que me fez permanecer na profissão foi o fato de gostar e muito do que faço. Não consigo me ver em outra atividade", argumenta. Entre ser durão ou compreensivo com o pessoal, José Luiz conta que o relacionamento do engenheiro com seu pessoal deve ser o mais profissional possível.  "Devemos focar sempre o justo e o correto, compreendendo os dois lados da questão", diz. Pelo visto, a habilidade de relacionar-se é atualmente uma das qualidades mais valorizadas pelas construtoras. Assim, o profissional que antes era muito mais focado na capacidade técnica, agora precisa desenvolver seus relacionamentos interpessoais.

fonte: Revista Téchne